Chorar já não fazia mais efeito. Como seria capaz de
imaginar que ainda sentiria coisas piores do que sentiu até aquele instante.
Seus olhos nem vermelhos estavam mais, era como se a chuva, que caía e batia
delicadamente no vidro da janela, lhe tomasse todas as lágrimas. Será que nem
isso poderia ser seu? O dia estava nublado, mas não estava tão frio, seus
pensamentos não estavam agitados, mas mesmo assim, devagar, passeavam por sua
mente sem nem se preocupar em que lugares iriam acabar parando, quais lembranças
iriam acabar despertando, quais conflitos mais iriam causar. Sabia que os
planos não eram esses, não era pra ser assim.
A luz que entrava pela persiana, coisa que sempre
teve efeito inspirador, continuava entrando, difusa, mas sem o charme de antes,
sem preencher o ambiente que passou a ser dela, quando o que julgava ser sua
razão de viver se foi. O rádio estava calado e o computador ligado, mas sem
nada pra fazer. A sensação de que o mundo girava devagar, independente do que a
vida lhe trazia para ser vivido, era quase audível. Sem Sol, sem vento, só o
som das gotas no vidro e o barulho das pessoas que eventualmente passavam
falando na rua. Por que as coisas pareciam ter sentido para os outros? Ela não
entendia. Não podia se lembrar do que queria lembrar, não tinha forças pra ver
como era sua vida antes dele ir embora e lhe tirar o chão que estava tão firme
embaixo de seus pés. Piscadas longas a faziam quase querer não abrir mais os
olhos, mas não queria mais tentar ter controle, nem sobre isso, não queria ver
o que seus pensamentos até então só falavam. Fixou o olhar no lugar onde sempre
quis ter um porta-retratos e, depois de alguns minutos, sem perceber,
adormeceu, não estava acordada a muito tempo, mas estava cansada de tentar
lutar contra a angústia que lhe acertara em cheio.
Quando abriu os olhos novamente, não era mais a luz
do dia que invadia seu espaço, a luz amarela do poste da rua que a incomodava,
fazia isso tão bem que a fez levantar de seu sofá para fechar a persiana. Mesmo
sem enxergar direito notou que tudo do lado de fora estava dramaticamente úmido
e sem movimento, as luzes não iluminavam por completo a praça que parecia
descansar chorosa e solitária na frente de sua janela. Tudo estava tranquilo,
até os passos do homem, que caminhava devagar e olhando para o chão, do outro
lado da rua, tão discretamente que despertava curiosidade suficiente para
prender a atenção da única pessoa que não esperava se interessar por nada. Ela
o viu caminhar e se sentar no banco que estava embaixo de uma árvore de galhos
baixos, que não lhe permitiam ver claramente seu rosto, mesmo assim ficou lá,
parada, observando, não reparando o quanto não era de seu costume fazer isso.
O som de um carro de polícia passando ao longe a
despertou de seu transe, ela percebeu que já era noite por completo e não se
lembrava se as portas de sua casa estavam trancadas, como deveriam estar.
Desceu as escadas com o quadro da praça e do homem na mente, ele parecia estar
pensativo, talvez esperando, não sabia. Passou pela cozinha, pegou um copo
d’água e foi até a porta, colocou a mão na maçaneta e girou sem muita firmeza,
como quem já sabia que estava trancada, mas desta vez não estava e a porta
abriu ruidosamente assim que ela se virou de costas, se assustou e soltou o
copo que se espatifou no chão, chamando a atenção de quem passava na rua. Se
virou rapidamente e antes de conseguir fechar a porta por completo percebeu que
só havia uma pessoa por perto e agora essa pessoa sabia que ela também estava
lá. O fato de ser notada, curiosamente fez a solidão que estava sentido ir
embora e quando olhou novamente para sua casa, vazia, e deu seu primeiro passo
de volta para sua angústia, pisou em um caco de vidro, que não passou pela sola
de seu sapato, mas estalou como um aviso, uma placa de saída, uma opção, talvez
uma ideia sem muito juízo. Os pensamentos pararam por um instante e o controle
voltou por um segundo, já nem se lembrava como era que isso funcionava. O
coração ainda batia forte e a imagem dos olhos assustados de quem a fez
despertar, mesmo que só por um segundo, eterno, ainda estavam claros em sua
mente quando abriu novamente a porta antes que a adrenalina do susto passasse.
Um momento de coragem, de atitude, mas sem saber que tipo de reação causaria e
sem pensar se poderia encontrar problemas semelhantes ao que passara a alguns
meses ou ontem, para ela não fazia diferença. Alguém para estar perto era tudo
que ela queria, não importava o perigo que pudesse existir, não importava se
iria parecer maluca ou se ele não iria querer ouvi-la, mesmo porque, falar não
era o que ela pretendia fazer.
Do mesmo modo que ele estava quando ela fechou a
porta, estava quando abriu. Como se a madeira não o impedisse de vê-la um
segundo sequer, como se ele pudesse ver todo seu ambiente solitário, escuro, e
se interessasse pelo motivo de parecer tão acolhedor e aconchegante por fora,
mas tão gelado e vazio por dentro. Imaginando isso, se apressou em passar e
fechar a porta assim que seu calcanhar permitisse, e assim fez. Sem dar tempo
para seus pensamentos lhe mostrarem milhões de motivos que teria para não fazer
aquilo, caminhou tentando se conter pra não acelerar demais os passos. Seria
mesmo uma saída, uma possível válvula de escape? Extrema loucura! Seria o que
ela diria pra alguém que lhe contasse uma história parecida. Mas esse foi outro
pensamento sufocado pela necessidade de se ter alguém, que respira o mesmo ar
que você, do seu lado. Quando chegou perto notou que os olhos do rapaz a
fitavam, assustados ainda. Se sentou na outra ponta do banco e olhou para o
chão, com as mãos entre os joelhos, insegura, tão pronta quanto alguém que fez
algo errado e se arrepende, está quando vai levar uma bronca. Pronta para
aceitar o que pudesse vir e pedindo pra não ser nada ofensivo, ela notou que
ele também aparentava não saber o que fazer, talvez com razão, mas quando se
viraram um para o outro, reparou que seu olhar não era mais de susto, também
não estava totalmente seguro, o que, sem deixar perceber, a fez voltar a
respirar e se lembrar que não havia planejado nada depois de ter se sentado ao
lado de um completo estranho, que nem tão atraente era.
O que fazer numa situação assim? O que viria pela frente? Isso ela não era
capaz de saber ou prever, nem era capaz de evitar sentir o coração batendo dos
pés a cabeça, mas sabia que alguma coisa havia mudado naquela noite. Sentir que
o olhar dele, mesmo depois de muitas idas e voltas, se mostrava mais profundo e
aconchegante que sua casa cuidadosamente decorada com seus sentimentos e suas
lembranças, de onde acabara de sair, a fez pensar que sua noite já tinha sido
melhor do que muitos dias e, por isso, já poderia até terminar, mas também a
fez querer que aquele momento não acabasse nunca mais.
4 comentários:
Tudo bem que demorei quinze minutos para conseguir ler...
Seu texto faz a gente sonhar.
Um beijo!
Escreva em pedaços da próxima vez, rs!
Eu que fiz o comentário... mas, tá salvo o login da Fê!
É a Bibibibibibibibibibibibibibibibibibibibibibibi!
Bi! Esse foi só um pedaço!
Cada frase um cenário, um gesto, uma expressão.
Gostei muito. Que banquinho especial... :)
Beijos da Fê.
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